Despejadas e com auxílio cortado, famílias da região da cracolândia vão parar em favelas

André Luiz Ladanyi e seus dois filhos na frente do barraco onde família vive em Itaquera, zona leste de São Paulo

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Depois de ter auxílio-aluguel cortado pelo governo de SP, André Luiz Ladanyi e seus dois filhos se mudaram para uma favela
  • Author, Leandro Machado
  • Role, Da BBC Brasil em São Paulo

Em janeiro, a família de André Luiz Ladanyi teve de se mudar para uma favela em um morro de Itaquera, periferia da Zona Leste de São Paulo.

Na comunidade, erguida em uma área de mata, o chão é de terra e a maior parte das dezenas de casas, de madeira. A possibilidade de deslizamentos e da queda de grandes árvores, que ainda ocupam o alto de barrancos, tira o sono das pessoas que vivem embaixo.

"Se eu não viesse para cá, não tinha como dar comida para meus filhos. Foi precisão, não foi escolha. Eu não tenho dinheiro para nada", diz Ladanyi, de 36 anos, por telefone.

Ele, a esposa e dois filhos foram viver na comunidade depois que o governo de São Paulo interrompeu os repasse de auxílio-aluguel para 27 famílias que antes viviam na região conhecida como cracolândia, no bairro de Campos Elíseos, centro da capital paulista.

Essas famílias, como a de Ladanyi, foram desapropriadas pelo governo em abril de 2018. Elas viviam na chamada quadra 36, a poucos metros do "fluxo" — área de consumo e venda de crack a céu aberto.

No local, o governo prometeu construir uma nova unidade do Hospital Pérola Byington, referência no atendimento de mulheres. Mas a obra pouco avançou desde então.

Desde 2014, a quadra 36 foi classificada pela prefeitura como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), porção do território que deve ser preferencialmente destinada à moradia para pessoas de baixa renda.

Barracos da favela onde vive família de André Luiz Ladanyi

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Favela onde família de André Luiz Ladanyi vive não tem saneamento básico

Por isso, a lei determina que, caso haja desapropriações na área, o poder público é obrigado a oferecer opções habitacionais para toda a população afetada pelas remoções.

Em abril de 2018, 200 famílias moravam na quadra 36. Com as desapropriações, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo do Estado, passou a pagar auxílio-moradia de R$ 400 mensais para parte dos antigos moradores que viviam ali de aluguel ou em pensões. Mas esses repasses foram interrompidos pela gestão João Doria (PSDB), em janeiro deste ano.

Também foi oferecida uma carta de crédito de R$ 150 mil para que algumas famílias conseguissem comprar imóveis —, mas elas reclamam de processos lentos e burocráticos para ter acesso ao benefício, além de o valor ser insuficiente para adquirir moradias adequadas.

Outro grupo, formado por antigos proprietários, foi indenizado por ter de deixar seus imóveis, embora os valores só tenham sido depositados quase um ano depois das desapropriações.

Pagar aluguel ou alimentar os filhos?

A família de Ladanyi viveu por quase dois anos em uma pensão na quadra 36. Removido da área pelo governo, ele passou a receber o auxílio-aluguel todos os meses.

Com o dinheiro, ele e a mulher alugaram, até janeiro deste ano, uma pequena casa em Itaquera, enquanto aguardavam a CDHU liberar a carta de crédito para a compra de um imóvel novo, o que ainda não ocorreu.

"Fui no banco e o auxílio não tinha caído. Não me avisaram antes nem nunca explicaram o motivo. Desde então, não recebi mais", diz.

Ladanyi faz bicos descarregando caminhões no Brás, mas nem sempre consegue trabalho.

Sem o auxílio e com dois filhos para alimentar, deixou a casa onde vivia para ocupar um barraco. "Ou a gente pagava aluguel ou dava comida para os filhos. Não tivemos escolha, não podemos deixá-los morrer de fome", diz.

André Luiz Ladanyi mostra morro onde fica favela

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, André Luiz Ladanyi teme deslizamentos de terra e queda de árvores no morro onde fica a comunidade

No local, a situação é precária: não há saneamento básico, o esgoto corre a céu aberto e a instalação elétrica foi feita por meio ligações irregulares. Também há o constante risco de deslizamentos e queda de árvores em cima dos barracos.

Impacto da pandemia

Desde março, com a paralisação da economia diante da pandemia do novo coronavírus, o trabalho tem ficado cada vez mais escasso para Ladanyi — sua esposa também está desempregada. "Estou desesperado, meu amigo. A gente não sabe o que fazer", diz.

Ele deve receber R$ 600 do auxílio emergencial do governo federal dado a trabalhadores autônomos nesse período de pandemia. Enquanto isso, a família tem vivido de doações de alimentos de uma igreja evangélica.

Caso semelhante ocorreu com a família de Vanderlei Aparecido Colisse, de 43 anos, que morou na quadra 36 por mais de um ano antes de ser desapropriado pelo governo do Estado. Com uma filha de dois anos e oito meses, ele também sustenta a casa descarregando caminhões no Brás.

Após a remoção, a família passou a receber o auxílio-aluguel, viveu em uma casa na região central, mas, com o corte do benefício, foi despejada e acabou indo morar em uma favela debaixo de um viaduto do bairro da Mooca, também na Zona Leste.

"Minha mulher foi despedida. As aulas da creche da nossa filha foram suspensas por causa do coronavírus, então minha mulher não pode sair para procurar emprego. Também não consigo mais trabalho por causa da pandemia. Muitos dias da semana a gente não tem o que comer", explica, por telefone.

Outra ex-moradora da quadra, a auxiliar de limpeza Cassia Aparecida da Silva, de 34 anos, também está vivendo com dificuldades — seu auxílio-aluguel foi cortado em janeiro, sem aviso ou explicações.

"Tenho quatro filhos, sou sozinha. Esse dinheiro, querendo ou não, ajudava muito. Consegui pagar o aluguel neste mês, mas não sei como vai ser o próximo. Ainda mais porque é possível que eu perca meu emprego por causa da pandemia", explica.

Contatada pela BBC News Brasil na segunda-feira (20/04), a gestão Doria afirmou que os benefícios, inclusive aqueles não pagos nos meses anteriores, seriam depositados naquele mesmo dia. Porém, mesmo questionado, o governo não explicou o motivo da suspensão dos repasses desde janeiro.

Ação foi ilegal, diz MP

A remoção dos moradores da quadra 36, ocorrida em abril de 2018, foi classificada como ilegal pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que entrou na Justiça com uma ação civil pública contra a prefeitura e o governo do Estado.

Por lei, todas as Zeis, como a quadra 36, devem ter um conselho gestor formado por membros do poder público e da sociedade civil. Isso significa que qualquer intervenção no local deve ser aprovada pelos conselheiros.

Segundo o MP, ao pedir a remoção dos moradores, o governo do Estado não informou à Justiça que a área se tratava de uma Zeis, como manda a lei. O conselho gestor só foi formado dois dias antes do início das desapropriações e, por isso, a intervenção no território não pôde ser votada.

O governo do Estado argumentou que, antes da transformação da área em Zeis, havia um decreto do então governador Geraldo Alckmin (PSDB) transformando o terreno em ponto de interesse social para a construção do hospital — na visão do governo, esse decreto anterior desobrigou a gestão a cumprir a lei municipal que transformou a área em zona especial.

Na ação, o Ministério Público critica a operação. "Ocorre que, como se observou em diversas oportunidades nos últimos anos, intervenções apoiadas em discursos de inclusão social, diversidade sócio-econômica e desenvolvimento de projetos culturais resultaram em conflitos pela apropriação do espaço e, muitas vezes, na expulsão da população mais pobre em virtude da valorização e transformação dessas áreas."

Para Felipe de Freitas Moreira, arquiteto e urbanista do Instituto Pólis e um dos conselheiros da quadra 36, a ação do poder público teve consequências "cruéis" para famílias já vulneráveis.

"É um absurdo que o próprio Estado tenha colocado essas famílias na rua, criando uma situação ainda ainda mais precária e vulnerável, sem acompanhamento social, como a lei prevê", diz.

Pessoas na cracolândia, em SP

Crédito, AFP

Legenda da foto, Milhares de usuários e traficantes de drogas ocupam há décadas ruas de área conhecida como cracolândia

"Hoje, o governo fala em prevenção ao coronavírus, mas como fazer isolamento social se você não tem uma casa? Como se prevenir se você mora em uma casa precária e mal consegue sobreviver?", questiona.

Para Raquel Rolnik, professora da Faculdade Arquitetura e Urbanismo da USP, a situação dos ex-moradores da quadra 36 é um resumo das milhares de desapropriações de famílias de baixa renda na Grande São Paulo.

"Essas milhares de pessoas removidas todos os anos, que já vivem em situações precárias do ponto de vista físico das habitações, acabam se mudando, muitas vezes para áreas ainda mais distantes e precárias. Ou seja, as remoções feitas pelo poder público, que não oferece políticas habitacionais consistentes, acabam gerando mais vulnerabilidade", explica.

Seis meses após o despejo, um estudo do Fórum Mundaréu da Luz, em parceria com a USP, cadastrou metade das 200 famílias que viviam na quadra 36. O levantamento constatou que 60% dos cadastrados foram viver em pensões do centro ou em ocupações de sem-teto — entre elas, o edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou em maio de 2018, deixando sete mortos.

Outros 14% dos moradores se mudaram para favelas de várias regiões da cidade — 4% continuaram em pensões de Campos Elíseos. O restante tinha paradeiro desconhecido.

Em nota à BBC News Brasil, a CDHU afirmou que, além do auxílio-aluguel, continua atendendo às famílias da quadra 36 com algumas alternativas, como a carta de crédito para compra de imóveis na região, além de um banco de dados com áreas disponíveis para essa aquisição. Segundo a entidade, 88 famílias da quadra 36 receberam o atendimento habitacional definitivo e 74 delas optaram por adquirir um imóvel na região central de São Paulo.

Também afirmou que estuda atender às famílias remanescentes na Parceria Público-Privada que vem construindo habitações na região central.

Cracolândia em disputa

O antigo bairro de Campos Elíseos, que no início do século passado era morada de ricos e chegou a abrigar uma rodoviária, mudou de aparência no início dos anos 1990 com a chegada de centenas de dependentes de crack e de traficantes. Para os paulistanos, o local virou sinônimo de cracolândia.

Nas últimas duas décadas, operações policiais e urbanísticas se avolumaram para tentar resolver a questão. Equipamentos culturais, como a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa, foram instalados na região com a esperança e o slogan de revitalização da área.

Polícia revistando pessoas na cracolândia

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Em maio de 2017,após operação policial, João Doria afirmou que a cracolândia tinha 'acabado', porém usuários de drogas continuam ocupando as ruas da região até hoje

No entanto, o cenário pouco mudou. Em maio de 2017, houve outra operação policial: dezenas de pessoas foram presas e centenas de usuários de crack tiveram de deixar o fluxo — muitos foram internados para tratamento. "A cracolândia acabou", disse à época João Doria, então prefeito de São Paulo e hoje governador do Estado.

A polícia dizia que a região passou a ser dominada por membros da facção criminosa PCC. De fato, não eram incomuns imagens de homens armados circulando pelas alamedas de Campos Elíseos.

O diagnóstico de Doria de que a cracolândia havia sido extinta, porém, mostrou-se equivocado poucos dias depois. Os dependentes químicos e os traficantes retornaram à região e lá continuam até hoje.

As intervenções urbanísticas também continuaram. Ao lado do fluxo, o governo do Estado construiu centenas de apartamentos por meio de uma Parceria Público-Privada, mas, por critérios de renda e crédito, a maioria das moradias foi destinada a pessoas oriundas de outras regiões da cidade.

Para Raquel Rolnik, da USP, as políticas públicas na região da cracolândia priorizaram a repressão aos usuários de drogas e intervenções urbanísticas que não auxiliavam a população local.

"Nas últimas duas décadas, o poder público tentou intervir na área com o objetivo de levar moradores com faixas de renda maiores para a região. Por um lado havia repressão contra os usuários de drogas, que é uma questão de saúde pública. Por outro, ações para revitalizar a área", explica.

"Mas isso não aconteceu, foi um fracasso total, porque as ações não consideraram as necessidades habitacionais e sociais da população mais pobre."

*Nessa sexta-feira (24), um dia após a publicação da reportagem, a CDHU enviou uma nova nota à BBC News Brasil:

"A CDHU informa que o auxílio moradia está disponível desde segunda-feira (20) para as famílias, junto com as parcelas retroativas. Foi oferecida a carta de crédito a elas por ser a alternativa mais rápida, o que nunca excluiu outras opções de atendimento habitacional. Essa solução foi validada no Conselho das Zeis da Quadra 36 e respeita a vontade das famílias. Prova disso é que 88 famílias receberam o atendimento habitacional definitivo e 74 famílias delas optaram por adquirir um imóvel na região central de São Paulo.

Em relação às famílias citadas na reportagem, a CDHU informa, sem apontar nomes para não expor os envolvidos:

1) Uma família abandonou o processo de habilitação e regularização de pendências do termo de adesão, que é o contrato firmado com a família. A CDHU tentou contato por três meses, mas não obteve retorno.

2) Em outro caso citado pela reportagem, não foram entregues os documentos necessários para a emissão da carta de crédito, apesar da CDHU ter aguardado por dois anos. Por isso, houve a suspensão provisória do benefício por abandono do processo de habilitação. Esta família entrou em contato com a CDHU nesta quinta-feira (23), encaminhou os documentos necessários, seu auxílio moradia já foi reativado e carta de crédito foi emitida.

3) Por fim, um terceiro caso apontado já está com o auxílio moradia normalizado e aguarda a emissão da carta de crédito.

O governo também informou que a nova unidade do Hospital Pérola Byington será entregue em 2022, dentro do prazo estipulado."

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